Vivemos a “Era do Esculacho Social” (ESC). Onde se propuser investigar o
setor público encontrar-se-ão as mais diversas fraudes, excessos e
desvios de poder, todas ensejadoras dos mais diversos crimes contra a
administração pública, e, por conseguinte, violadora dos interesses
sociais, tudo de forma sedimentada como mola propulsora de um sistema
que assim funciona, e ponto. É quase que inviável a tentativa de se
dimensionar o tamanho desse esculacho, poder-se-ia apenas asseverar,
bastando um tímido olhar perfunctório do sistema, que os efetivos das
polícias e do MP revelar-se-iam risíveis quantitativamente, para um país
que pretendesse investigar e punir esses verdadeiros transgressores da
República. Uma lamentável constatação da mais pura autodegradação humana
em seus sentidos ético-morais apodrecidos, que mesmo banhados aos mais
caros perfumes franceses, adquiridos com o dinheiro público, não
disfarçam o cheiro de merda da pior olfação.
Fatos contundentes desse esculacho ocorrem a cada minuto nesse país.
Tomamos conhecimento, via imprensa, de uma dízima periódica desses fatos
sistematizados, e sabemos que uma outra dízima periódica daquela, que
resta descoberta, refoge do campo da impunidade e se subsume aos rigores
temperados da lei... Seria demais concluirmos que não alcançamos o
posto de um verdadeiro “Estado Democrático de Direito” conforme expressa
previsão constitucional nos vêm a anunciar? Seria um engodo
constitucional? Analisemos partilhando a expressão “Estado Democrático
de Direito”.
Pois vejam:
A sociedade civil servil, o povo, vive indubitavelmente um Estado de
Direito. Nós, reles cidadãos comuns, devemos total respeito ao
ordenamento jurídico, sob pena de sermos punidos nos rigores da lei. Se
roubarmos um cacho de bananas, corremos o risco de sermos condenados
pela subtração, se o magistrado entender não ter ocorrido o crime de
bagatela, considerando ter havido violência, ou simplesmente entender
por não aplicar o benefício da bagatela por ter acordado de mau humor. O
cidadão que sonega parcela de seus tributos e cai na malha fina, roda. A
lei como reguladora social do cidadão comum procura cumprir o seu
papel, ainda que o Estado se revele costumeiramente incompetente
fiscalizador, donde se conclui que a sociedade civil servil vive sim um
Estado de Direito, ainda que por vezes distorcido de sua finalidade. E
seria democrático esse Estado de Direito? Em uma sociedade que parcela
considerável encontra-se às margens da dignidade, com prestações
públicas “indignas pra cachorro”, onde educação, saúde, transporte e
segurança se mostram extremamente deficitárias, não podemos ventilar
tratar-se de uma sociedade democrática. Como falar de democracia onde a
dignidade não está democratizada? Até porque, sem educação, os
instrumentos democráticos ou não são utilizados ou são subutilizados,
como uma linda canção soada à quem não pode ouvir...
Quando tratamos da sociedade civil de poder os papéis podem se inverter.
Ao poder, blindado pelo sistema, em regra, tudo é permitido, ainda que
de fato. Ao poder não se aplicam os rigores da lei, lei, vale dizer,
proporcionalmente bem menos rigorosa que a aplicada ao cidadão comum...
Enquanto o roubo de um cacho de bananas muito provavelmente acarretará
uma condenação, o roubo e a sonegação de milhões dos cofres públicos
dificilmente serão desvendados, mas se desvendados pela imprensa
investigativa, jamais pelo poder, por obvias razões. A depender do autor
do desvio, de seu nível de influência política, de seu poder
financeiro, esse crime poderá ser arquivado “por falta de provas” ou ter
prescrita sua punibilidade por uma justiça que se revelará mais lenta
que sua ordinária lentidão... E quando o ordenamento regula os crimes de
poder, muitas vezes ainda, concede imunidades, prerrogativas, que suas
funções acabam por servir de verdadeiros escudos para as mais diversas
práticas criminosas com o dinheiro público, donde se conclui que a
sociedade de poder encontra-se inserida em um Estado de Direito apenas
no tocante aos benefícios que suas funções lhe proporcionam, ao passo
que, quanto aos rigores da lei é o Estado anárquico que prevalece... Já
quanto à ser democrático, esta parcela da sociedade vive uma democracia
em toda sua plenitude, possui todos os instrumentos e liberdades para
dela gozar, inclusive da nossa cara...
Está aí localizada a grande ferida constitucional ao princípio da
igualdade em sua essência, pois o próprio ordenamento, criado pelo
poder, cria distinções que dividem a sociedade em verdadeiras castas: A
imensa casta, base da pirâmide, é ocupada pelos desprivilegiados do
sistema e a casta de diminutos componentes pelos privilegiados, criando,
em verdade, duas espécies de cidadãos: os de cima que cagam e os de
baixo que são cagados... Será que, estar-se-ia a aplicar o princípio da
isonomia material, tratando iguais de forma igual e os desiguais de
forma desigual, na medida de suas desigualdades? Será que são tão
diferentes de nós? Precisamos urgentemente da cota servil para os
cidadãos comuns, nessa conveniente lógica ébrio-paliativa de se
consertar o sistema sem efetivamente se combatê-lo...
Sem mais.
Leonardo Sarmento.
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